O Flamengo de Jorge Jesus não é um resgate do antigo futebol brasileiro

Alexandre Vidal / Flamengo

Por Leonardo Miranda, Jornalista, formado em análise de desempenho pela CBF e especialista em tática e estudo do futebol

TOPO

Nem todo time que joga bonito é revolucionário ou resgata o futebol antigo. Precisamos separar a análise da percepção subjetiva das coisas.

O Flamengo de Jorge Jesus não é um resgate do antigo futebol brasileiro

Alexandre Vidal / Flamengo

No Bem, Amigos! de ontem, o Flamengo foi motivo de uma interessante discussão. O comentarista Marco Antônio Rodrigues disse “nunca ter visto um time assim” no Brasil, e em resposta, Mano Menezes disse que é preciso ter um pouco mais de cuidado na análise: “O jeito que o Flamengo está jogando agrada a todo mundo. Nós não somos contra isso. Mas não podemos achar que o futebol brasileiro começou agora”. 

Comentaristas e Mano Menezes discutem sobre intensidade e estilo de jogo do Flamengo em 2019

Comentaristas e Mano Menezes discutem sobre intensidade e estilo de jogo do Flamengo em 2019

O momento que o Flamengo vive merece respeito. É um time que pede para ser admirado porque joga o fino da bola mesmo. O problema é o deslumbramento. Se encantar demais, subir no salto e ver as coisas com um espelho longe da realidade. É difícil não se deixar deslumbrar, porque futebol lida com emoção, e já muito saudosismo e subjetividade envolvidas. E memória afetiva. O Flamengo lembra os times marcantes da infância de cada um, e por isso, passa a ideia de que é uma coisa muito nova.

Em momentos de histeria coletiva é preciso ser objetivo. Racional. De onde vem as ideias que Jorge Jesus tem como técnico? Como ele aprendeu a transformar isso em treinos?

Se você tivesse que resumir esse Flamengo em termos termos táticos, meramente conceituais, quais seriam? Podemos apontar três ideias principais que os jogadores conseguiram entender e levam a campo nos jogos. Uma delas é o conceito de bola coberta e bola descoberta, usado na defesa. O outro é uma mobilidade muito grande no ataque, seja com a bola e sem a bola. E o outro foi apontado pelo Bodão e Mano Menezes, que é a intensidade de jogo: o time não para e sempre realiza suas ações numa velocidade muito grande.

Nada se cria, tudo se transforma

Nenhuma dessas ideias é nova. Ou resgatam o “antigo futebol brasileiro”. Na verdade são ideias puramente europeias, que existem há pelo menos trinta anos. Pegue o conceito de bola coberta e bola descoberta. O pai desse conceito é o italiano Arrigo Sacchi. Ele treinava o Milan e fazia experimentos para brincar com a linha de impedimento. Queria que os atacantes fossem os primeiros defensores e todo mundo avançasse para criar uma teia ao redor da bola. Cobrir a bola e deixar o adversário impedido.

Arrigo Sacchi, bi-campeão europeu com o Milan — Foto: Leonardo Miranda

Arrigo Sacchi, bi-campeão europeu com o Milan — Foto: Leonardo Miranda

A principal inspiração de Sacchi vem da Holanda de 1974. Até então, a Holanda era um país sem tradição no futebol. Tinha um grande time, o Ajax, e o Feyenoord, campeão mundial de 1970. Na Copa ela chegou como surpresa pela forma como caçava a bola e não deixava o adversário jogar. O uruguaio Pedro Rocha, camisa 10 do São Paulo na época, saiu exausto da derrota de 2 a 0 para a Laranja Mecânica e disse que nunca tinha visto um time que não deixava ele nem virar o corpo de tão forte. Não é o Jorge Jesus que inventou a marcação pressão no futebol brasileiro, ela existia antes mesmo do Flamengo ser campeão mundial.

O futebol total que hoje tão é admirado não é unicamente holandês. Ele é uma mistura de influências que começam na Escócia e terminam em Londres. A ideia de ter a bola como centro do jogo veio dos ingleses. Mais precisamente de Vic Buckingham. Vic treinou o Tottenham, Ajax e Barcelona. No time holandês, ele viu uma jovem promessa da base e o levou ao time principal. Era 1965 e ele saiu ao fim do ano, mas a filosofia de Vic influenciou bastante aquele jovem que se chamava Johan Cruyff. Consegue ver os dois aí?

Vic Buckinham e Johan Cruyff em 1964 — Foto: Leonardo Miranda

Vic Buckinham e Johan Cruyff em 1964 — Foto: Leonardo Miranda

Só que o Flamengo é muito mais que posse de bola. Na verdade é um time bem direto, que fez 36% dos gols em contra-ataque e outros 25% em roubadas de bola na frente. É um time rápido, de futebol direto, vertical e agressivo. É muito mais Bayern de 2013 que Barcelona de 2011. Marca bem, rouba e sai ainda melhor. Marcar bem para criar espaços lá atrás é uma ideia difusa e que muito time fez. Mas tem um que tornou isso oficial: a Inglaterra em 1966.

Alf Ramsey observava a Argentina jogar e via que eles levavam vantagem no meio-campo. Seus jogadores eram rápidos e iam de uma área para a outra, roubavam a bola e corriam contra os defensores perdidos. Foi daí que ele teve a ideia de acabar com o 4-3-3 e colocar um jogador a mais no meio, que faria várias funções: era atacante com a bola, defensor sem ela e meia quando o time precisava. Um craque chamado Bobby Charlton.

Bobby Charlton e Alf Ramsey — Foto: Leonardo Miranda

Bobby Charlton e Alf Ramsey — Foto: Leonardo Miranda

A Inglaterra fez uma Copa de 1966 muito boa. Triturava os adversários no físico e em contra-ataques mortais – parece o Fla contra o Grêmio? Parece tão simples, mas antes da Inglaterra, a maioria dos times jogava no WM e 4-2-4 e eram estáticos demais. A bola ia jogador, que dava o passe e ficava parado. Era um time que jogava com a bola e sem a bola, o que os portugueses dizem que foi a principal contribuição de Jorge Jesus ao Brasil – leia na Folha.

Esse jogar sem a bola, sem parar e sem pensar no coletivo teve início lá na Hungria, em 1954. Um falso nove na frente, mobilidade da linha de frente, meias que chegavam e recuavam. O primeiro time que se aquecia antes do jogo para entrar mais ligado e preparado. Hoje chamaríamos esse time de intenso, pela forma como era rápido e veloz na execução de seu jogo. Dizem que o Brasil, antes do jogo na Copa, ridicularizou o aquecimento. Perdeu por 4 a 2.

Hungria de 1954 — Foto: Leonardo Miranda

Hungria de 1954 — Foto: Leonardo Miranda

Agora faça a pergunta: o que o Flamengo tem de brasileiro? O que Jorge Jesus está resgatando? A resposta é simples: NADA.

Bola coberta e descoberta? Existe há trinta anos. Intensidade? Coisa que muito time coloca em campo. Jogar sem a bola? Existe desde a década de 1960. O Flamengo pode ter conceitos totalmente europeus e PARECER um time brasileiro do passado, de futebol bonito, e pode parecer que é uma revolução no nosso país porque poucos times jogam assim. Verdade ou mentira? Não sabemos porque é uma percepção. Que é subjetiva, pessoal e acontece apenas na cabeça de cada um.

Discutir percepções é o foco errado do debate sobre futebol

Discutimos demais as sensações do jogo. Ou é bonito, ou é feio. Ou é bom, ou é ruim. Não há muitas discussões sobre conceitos, ideias, metodologias. Todo mundo sabe que o futebol do Flamengo é bonito, mas ninguém sabe de onde vem. Achamos que é a varinha mágica do técnico, mas não sabemos como funciona o trabalho dele. Ver o jogo sempre pelo lado da percepção, do gosto pessoal e da memória afetiva faz com nosso país tenha muita opinião, mas pouco conhecimento.

jorge jesus, flamengo x csa — Foto: André Durão / GloboEsporte.com

jorge jesus, flamengo x csa — Foto: André Durão / GloboEsporte.com

Como não há conhecimento, nossa percepção fica exagerada quando um trabalho é bom. O Flamengo joga bem, então Jorge Jesus é um gênio. Exatamente como Tite era ao fim de 2015, quando o Corinthians encantava e arrancava elogios efusivos no mesmo Bem, Amigos!. Você lembra? Temos uma memória curta. Até então, Tite era o único técnico brasileiro atualizado e capaz de tornar a seleção um time atualizado e vencedor. Apenas três anos depois e nossa visão raivosa se volta contra ele. De moderno, Tite foi a “paneleiro”, “retranqueiro” e “ruim”. De novo, percepções.

Tite de cara feia na convocação da seleção brasileira — Foto: Pedro Martins / MowaPress

Tite de cara feia na convocação da seleção brasileira — Foto: Pedro Martins / MowaPress

Jorge Jesus não é um amante do futebol brasileiro do passado que está nos ensinando como jogar futebol ou um revolucionário da bola. Ele apenas traz conceitos que ele APRENDEU. E mais importante: estudou para saber como aplicar. Jorge Jesus é um dos 592 portugueses Uefa PRO, grau mais alto de qualificação que um treinador de futebol pode obter na Europa. Ele ficou 16 anos sem ganhar títulos, entre o Amora e o Belenenses e participou de dois rebaixamentos – Felgueiras (1995-1996) e Moreirense (2004-2005), para chegar onde está.

É por isso que ele não vai mudar, incomodar ou revolucionar o futebol brasileiro. Porque nosso futebol vai muito além de nossos técnicos. Nossas estruturas, arcaicas e amadoras, seguirão as mesmas após o português ganhar o Brasileirão. O Mister não muda a forma dos clubes se organizarem, com conselhos deliberativos que se elegem por conchavo político e gerem os clubes de forma amadora. Ele não muda o calendário inchado. Não paga as dívidas que impedem os clubes de contratarem bons jogadores, tampouco faz a CBF atuar em prol dos clubes, organizando campeonatos melhores para os times pequenos e colocando leis que beneficiem o trabalho em campo.

O tempo gasto debatendo percepções subjetivas dos técnicos – fulano é bom, fulano é ruim – é inversamente proporcional ao caminhão de problemas estruturais que temos.

Jesus segue sendo um técnico excelente. Seu trabalho o Flamengo é fora da curva. Esse é um time para ser admirado, visto e revisto. Mas nada vai mudar por conta dele. Talvez seja nossa percepção sobre o jogo que precisa melhorar.

Fonte: GE

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