Aborto: além da legalidade e do legalismo

O caso da criança abusada pelo tio, que ficou grávida com apenas 10 anos de idade, reacende a polêmica em torno do aborto legal no país.

A fogueira do radicalismo, bem ao estilo da velha e “santa” Inquisição, foi novamente alimentada com doses extras de combustível. O motivo? A determinação judicial para que fosse interrompida a gestação em uma criança de 10 anos que sofria abusos constantes da parte do próprio tio.

Tal decisão foi o estopim para que vários grupos, organizados em torno de conhecidas bandeiras contra e a favor do aborto se colocassem em suas respectivas trincheiras para alardearem seus bordões e gritos de guerra.

De ânimos exaltados, como é típico nos casos em que a politização se torna mais relevante do que a própria razão, ambas as partes se encarregaram de demarcar seus territórios por meio de estratégias de ocupação de espaços físicos e midiáticos tentando, com isso, alcançar a maior visibilidade possível em torno de suas ideias e atos.

As cenas, protagonizadas por militantes enraivecidos em frente ao hospital onde o procedimento cirúrgico acabou sendo realizado, deram uma amostra do quanto esse tema desperta paixões, algumas vezes imprevisíveis, levando os mais exaltados a cometerem desatinos inimagináveis, como a violação do sigilo legalmente exigido com o intuito de proteger a imagem da principal vítima dessa tragédia – a criança abusada.

Convém deixar claro que a livre manifestação do pensamento é um direito garantido constitucionalmente, mas isso não significa que os manifestantes tenham a liberdade de violar outros preceitos constitucionais que são igualmente necessários para a manutenção do estado democrático de direito. O Direito jamais deve ser invocado como mero pretexto para o descumprimento de outros direitos.

Entretanto, a análise que se impõe ao caso não gira em torno apenas das manifestações ideológicas suscitadas por essa temática. Gira, também, em torno do elemento principal que envolve a questão, ou seja, o direito à vida. Dessa forma, torna-se imperioso indagar – para início de conversa – o direito à vida de quem?

Três personagens se sobressaem neste contexto: o feto, a vítima e o estuprador. Defender a vida do feto é seguramente uma medida bastante razoável, pois, afinal, que culpa tem o bebê por todos os males praticados pelo estuprador? Além disso, não se pode relativizar a vida sob qualquer pretexto. Nem mesmo o argumento – “Um dia todos vão morrer mesmo. Fazer o quê?” – não parece sensato imaginar que, em qualquer situação, o mal possa ser remediado por meio da dessensibilização que justificaria não só a omissão, mas também, e até mesmo, a prática consentida de outros males visando à reparação do primeiro mal.

Entretanto, o direito à vida não é exclusivo para o feto. Ele se estende também à criança vítima dos abusos, pois além de não possuir as condições físicas e psicológicas necessárias para se tornar mãe de fato e de direito, ela não pode ser direta ou indiretamente responsabilizada pelas violências sofridas a ponto de se ver obrigada a conviver para sempre com as duras consequências advindas da maternidade precoce.

Do outro lado, temos a vida do agressor. O que fazer com tal criatura? Os que são declaradamente contra o aborto, em toda e qualquer situação, talvez se sintam totalmente livres para exigir que esse “monstro” seja sumariamente condenado à morte por ter praticado esse crime tão hediondo e abominável. Contudo, e o tal direito à vida, como fica nesse caso? A vida é a vida independentemente de quem esteja no usufruto dela.

O que se pode inferir de tudo isso? Pode-se deduzir que a maior parte das discussões em torno desse assunto tem mais a ver com o ego dos militantes do que com os fatos em si. O que se busca, na maioria das vezes, é a autoafirmação política, ideológica, religiosa ou jurídica.

Para muitos antiabortistas o que importa, de fato, é não aceitar que abortem as teses e opiniões que dão suporte à autoridade, por eles invocada, sem a qual se sentiriam moralmente castrados. De igual modo, grande parte dos abortistas está mais preocupada em garantir espaços de visibilidade pessoal do que se condoer com o sofrimento do outro visto que tentam minimizar estudos que apontam para as reais causas do problema – quantos abortos desse tipo são realizados anualmente no país?

Mais do que polemizar, o melhor que se tem a fazer é exigir das autoridades que o Estado, em parceria com a sociedade organizada, adote políticas públicas capazes de evitar tais abusos. Melhor do que ir para a porta do hospital gritar contra ou a favor do aborto é ir para a porta dos palácios e exigir melhores condições de vida para as crianças e adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade.

De igual modo, não adianta achar que a simples defesa da prática do aborto será capaz de garantir a proteção das crianças contra os abusos. A verdadeira segurança é aquela que impede que o mal aconteça na sua origem. Para que isso ocorra, faz-se necessário sentir, na própria pele, a dor de milhões de crianças e adolescentes que vivem totalmente à margem dos direitos e garantias fundamentais previstos na nossa Constituição Federal.

Mas é óbvio que isso dá muito trabalho. É mais fácil fazer discursos simplistas criminalizando o aborto ou defendendo a pena de morte para os estupradores, do que sair da zona de conforto para exigir que os preceitos constitucionais sejam estendidos, em toda a sua plenitude, a toda população, principalmente aos menos favorecidos.

Também é mais cômodo tratar o aborto como a panaceia para todos os males que afligem milhões de mulheres Brasil afora do que se opor à banalização da violência nos meios de comunicação, à erotização infantil, à veiculação de cenas de sexo explícito em plena luz do dia e à ideologização da sexualidade como se tudo isso fosse o produto natural de uma sociedade supostamente livre e evoluída.

Os discursos e as adesões políticas são livres, mas têm consequências. Fazer opção pela lei do menor esforço é uma alternativa que pode até acalmar a consciência, ou reforçar o ego, porém não trará a resposta definitiva para o problema. A verdadeira solução tem sua base estabelecida em um princípio de vida preconizado pelo Mestre dos mestres: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Essa é a maior prova de empatia que um ser humano pode dar.       

*Por Peniel Pacheco

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