A fé que move o capital

Religiões de diversos matizes, em várias regiões do Brasil, estão sendo colocadas em cheque pelos desvios de conduta – envolvendo sexo, dinheiro e poder – de ditos líderes religiosos.

No Distrito Federal, foi preso recentemente um pai de santo que usava a máscara da religião com o objetivo de aliciar mulheres, incluindo uma menor de 14 anos, para práticas sexuais abusivas. Conforme depoimento das vítimas à polícia, elas eram convencidas a manter relações sexuais com ele enquanto se dizia possuído por uma entidade chamada Exu Veludo. O sacrifício exigido era para se livrarem de maldições e conquistarem a prosperidade financeira.

No Ceará, foi noticiado outro caso semelhante envolvendo o pretenso guru Pedro Ícaro de Medeiros – mais conhecido como Ikky – acusado, por várias vítimas, pela prática de abusos sexuais, físicos e psicológicos cometidos durante sessões organizadas por sua seita religiosa.  

Em Goiás, como não bastassem as deprimentes revelações que correram o mundo envolvendo o famoso médium João de Deus – que até o momento já foi condenado a 40 anos de prisão pela prática de vários crimes, incluindo abusos sexuais contra mulheres – surgem agora revelações estarrecedoras, levantadas pela Operação Vendilhões, que apontam para uma série de irregularidades que teriam sido cometidas pelo Padre Robson, sacerdote no Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade, incluindo fraudes e o desvio de R$ 120 milhões das doações feitas por fiéis para a AFIPE – Associação Filhos do Pai Eterno. Há, inclusive, a suspeita do envolvimento de empresários e de políticos nas transações ilícitas.

No Rio, a Deputada-pastora Flordelis acaba de ser formalmente denunciada como mandante do crime que resultou na morte do próprio marido – o, também pastor, Anderson do Carmo. Segundo o Ministério Público, a trama vinha sendo articulada há anos e teria contado com a participação direta de filhos biológicos e adotivos da denunciada. Por trás do crime bárbaro, além da suspeita de abusos sexuais e de maus-tratos, surge a revelação do desaparecimento misterioso de cerca de R$ 6 milhões, fato que, de acordo com declarações da própria acusada, pode ter acirrado, ainda mais, os frequentes desentendimentos entre membros da família.

Tais cenas, infelizmente cada vez mais comuns nas páginas policiais, revelam o lado mais perverso do uso indevido da religião para ocultar práticas nada condizentes com a roupagem de santidade muitas vezes ostentada por falsos líderes que, na verdade, não passam de charlatães e impostores que, para obterem vantagens pessoais, não hesitam em transgredir a lei dos homens e – o que é ainda mais inaceitável – a própria Lei de Deus que dizem defender.

Para alguns, ocorrências desse tipo seria a prova da total falência da religião e da derrocada da fé. De acordo com essa lógica, crimes cometidos em nome de Deus justificariam, por si sós, a defesa da ascensão do materialismo – conectado com o ateísmo – ao lugar mais alto no pódio dos valores e postulados humanos.

Entretanto, essa lógica não resiste a uma análise mais profunda dos fatos, pois, ao contrário disso, a ambição desmedida revelada por tais líderes religiosos é a prova, isto sim, do quanto o materialismo tem contaminado até mesmo os ambientes nos quais o sexo, o dinheiro e o poder deveriam ser colocados nos seus devidos lugares, especialmente em razão dos valores intrínsecos à própria pregação religiosa. Ou seja, bem distante da ganância e da usura apregoada pelo hedonismo moderno que incita o ser humano a buscar, cada vez mais, fama, riqueza, poder e prazer sem a menor preocupação com as consequências de seus atos.     

Verifica-se, portanto, que a glorificação do materialismo em nada ajudaria a humanidade a fortalecer os melhores ideais de altruísmo, de amor e de respeito ao próximo, de dignidade da pessoa humana, de responsabilidade social e de obediência aos princípios espirituais que norteiam a conduta daqueles que verdadeiramente creem em um mundo melhor para todos e se empenham por alcançá-lo.

Isso implica dizer que a desestruturação espiritual representaria a queda de uma das principais barreiras de contenção contra a avalanche do egocentrismo e a consequente inundação de paixões incontroláveis focadas no individualismo em detrimento da valorização da vida em coletividade e da busca incansável pelo fortalecimento do bem comum.

Aristóteles já dizia que o homem “é um animal político”. Maquiavel, por sua vez, alertava que “o poder corrompe”. A natureza humana sem lastro moral e espiritual é uma porta aberta para a entrada das mais vis tentações que, uma vez instaladas, reduzem a condição humana a uma posição inferior à dos animais irracionais, considerando que, ao contrário de nós, estes não possuem consciência para servir de freio aos seus instintos mais bestiais.

Condenar abusos de qualquer natureza é justo e necessário – principalmente por parte daqueles que professam os valores transcendentais. Também o é, exigir a punição exemplar dos culpados. O que não se deve fazer é colocar tudo e todos na vala comum da superficialidade ou do preconceito – palavra tão tenazmente repudiada em tempos de liberalismo econômico e comportamental, em que cada um é livre para fazer o que bem desejar, atendendo apenas às conveniências do mercado, sem qualquer tipo de censura ou de restrições quanto aos critérios de escolhas.

Por ser suscetível ao erro, o ser humano precisa de instrumentos que o desafiem a crescer e a vencer suas próprias limitações e fraquezas. O aperfeiçoamento espiritual é uma dessas ferramentas que orientam o indivíduo na construção dos seus modos de ser, de pensar e de agir. Sem esses alicerces, o ser humano se perde na elaboração de sua escala de valores.

Vejamos, por exemplo, o caso do dinheiro. Todos sabem que, no universo capitalista, o dinheiro está presente em praticamente todas as atividades humanas. Isso inclui as artes, o entretenimento, a saúde, a alimentação e, até mesmo, as diversas atividades sociais de natureza não lucrativa. Como administrar isso? É aqui que entra a indispensável escala de valores. Ou seja, o dinheiro (tanto quanto as demais coisas) pode ser enquadrado como centro gravitacional de todas as nossas ações (na linguagem organizacional: atividade-fim) ou pode ser tratado como instrumento para a obtenção dos bens ou serviços essenciais à sobrevivência e ao bem-estar da pessoa humana (atividade-meio).

Tomemos, a título de exemplo, o caso de uma entidade religiosa que se propõe a pregar o evangelho. É óbvio que ela precisa de arrecadação para sua subsistência. Mas, em que lugar a arrecadação deve ser colocada? Como atividade-meio ou como atividade-fim? Em outras palavras: qual é a verdadeira prioridade – o evangelho ou a arrecadação?

Se a igreja, aqui exemplificada, usa a arrecadação como meio para difundir o evangelho e realizar suas obras sociais, está tudo bem. De fato, as atividades definidas pelo conjunto de membros devem dispor dos recursos necessários para sua concretização. Mas, se ela usa o evangelho como meio para a arrecadação de recursos, o dinheiro fica colocado em primeiro plano, ou seja, como atividade-fim, portanto em desfavor do próprio evangelho que passa a figurar como mero apêndice ou simplesmente como mercadoria a ser negociada visando à obtenção de mais recursos. Já dizia Paulo – o apóstolo – que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”, inclusive dos males espirituais.

Logo se vê que o problema não está no dinheiro em si, mas no “amor” a ele. O amor ao dinheiro pode até fazer bem ao sistema financeiro e ao mercado de consumo que precisa estimular a criação constante de produtos e serviços que despertem, no consumidor, novos desejos e necessidades para, com isso, fazer a máquina do lucro girar. Entretanto, ele fere de morte o amor a Deus e ao próximo.

Por tudo isso, não se pode ignorar que a existência de tantas práticas abusivas cometidas em nome do dinheiro – algumas delas praticadas inclusive por pessoas que deveriam dar o maior exemplo de vida modesta e recatada visando ao bem comum acima de tudo – tem sua gênese nos modelos de vida estabelecidos pelo próprio consumismo que, por sua própria natureza, acaba estimulando a ostentação como sinônimo de sucesso. Há, inclusive, a chamada Teologia da Prosperidade que não apenas endossa tais práticas, mas a vincula diretamente à obtenção das bênçãos divinas.

Ouvi de um político, já falecido, a seguinte frase emblemática: “Dizem que a ocasião faz o ladrão, mas eu não aceito isso, pois a ocasião faz o furto, o ladrão já está lá.” Isso nos leva a concluir que, sendo religiosa ou não, a índole de uma pessoa é determinante para orientar sua conduta. A diferença, por conseguinte, está em como cada um trabalha o seu caráter e os seus valores. Quando uma pessoa permite que a força do espírito realmente fale mais alto, ela é empurrada para cima em busca de valores mais elevados que conduzem à transcendência. Por outro lado, quando o poder do dinheiro fala mais alto, ela é empurrada para os braços do mercado no qual até a salvação pode ser comprada com um bom – mas enganoso – desconto.

Peniel Pacheco, especial para o Portal SOS BRASILIA

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