Autoafirmação em decibéis

Por: Flávio Noronha

Por Flávio Noronha

O brasiliense, há muito, chegou ao limite da paciência com as hostes de motoqueiros que permeiam o seu viver.

O termo “hostes” parece-me muito pertinente, eis que remete ao sinônimo “bandos” e à raiz do seu significado: hostis; inimigos. Isto mesmo: na prática, são autênticos inimigos do meio ambiente, sociopatas do trânsito, ladrões
da paz e da harmonia social.

Todos os dias vemos inúmeras atitudes de descumprimento de normas de civilidade, além, é claro, dos Códigos de Trânsito, do Penal e da Constituição Federal.

Eles transitam por qualquer lugar que os comportem, como donos dos espaços, em atitudes que beiram a arrogância, deixando claro aos demais usuários da estrutura viária que devemos abrir-lhes caminhos, para que deem vazão às suas temeridades.

A rigidez com que outros veículos são monitorados e fiscalizados pelo Detran, DER, Polícia de Trânsito e PRF, contrapõe-se à liberdade para práticas ilegais, conferida por omissão estatal aos tais perigosos motoqueiros.

E o submetimento da população aos riscos de sua condução inconsequente não lhes basta. Para suprirem vazios interiores que os atormentam, autorizam-se a tirar a paz alheia, “abrindo” os escapamentos de suas motos, cujo
barulho absurdo, além de “remediá-los”, os fazem “aparecer”.

A coibição estatal é mínima e realizada no modo “para inglês ver”, o que, é claro, não elimina as práticas odiosas dessa incivilidade e nos deixa, a todos, reféns da insanidade imposta por essa minoria sem educação.

O que fazer, então, diante destas circunstâncias, já que nos conduzimos sob a obediência e submetimento às leis e eles à margem ou em afronta a elas? Infelizmente concluímos que além de vítimas de vândalos do trânsito, somos
órfãos da intervenção efetiva do Estado contra suas práticas danosas.

O desprezo ao próximo e a normas de convívio social, ao lado da ausência de sentimento de remorso pela conduta e ações, e da despreocupação com a própria segurança e a dos outros, são características indicadoras, pela
psicologia, da chamada “sociopatia”.

O foco deste artigo paira, então, sobre os sociopatas em duas-rodas; o barulho que produzem; e a condução temerária e inconsequente, à margem da lei, que os fazem nada mais do que meros “motoqueiros”.

É importante esclarecer que a distinção entre motoqueiros e motociclistas não está na potência ou na nacionalidade de suas motos, mas no seu comportamento no trânsito.

Os motociclistas respeitam as normas; preocupam-se com os demais veículos e usuários das vias; pilotam preventivamente e, quase sempre, transitam a passeio. Os motoqueiros, não. Estes utilizam-se de suas motos para trabalhar, promovendo uma espécie de “vale-tudo” na pilotagem em meio ao já conturbado trânsito da Capital Federal, o que não assombra somente a Brasília de JK, mas, indistintamente, a maioria das cidades brasileiras.

Por que, então, eles agem assim? A sociopatia entre os motoqueiros é contagiante? Pedro Wanderley dos Santos responde a estes questionamentos ensinando que “gente sem-noção brinca com coisa séria e leva a sério o que é
brincadeira”. Pois, é!…

Por falar em “coisa séria”, importa destacar a fala da psicóloga Luciane Mina, em artigo publicado no “Jornal On-line Terceira Via”, sobre as repercussões do barulho na saúde humana: “o barulho é um fator estressante na
vida em sociedade, que faz gerar reação no indivíduo. O som distorce a harmonia do sujeito e ao receber esse estímulo de decibéis maior que o normal, nosso corpo reage, seja para lutar, seja para fugir. É como se a pessoa estivesse recebendo um empurrão e isso explica o fato de muitas pessoas xingarem, se aborrecerem, ficarem agressivas ou, por outro lado, negarem o barulho, se encolhendo, se fechando ou se defendendo de alguma forma”.

Na prática, a produção de barulho ao ponto de provocar reações incontidas de autodefesa é a forma neurótica de alguns – que buscam autoafirmação por caminhos destrutivos – alcançarem notoriedade, respeito, aprovação e enaltecimento pelos seus pares, e uma tentativa de tirar-nos do nosso mundo e nos levar ao deles. Para Menmou, “a autoafirmação deveria se traduzir em auto-decepção, uma vez que, para ‘ser’, não é necessário se ‘promover’.

Não é raro virmos pessoas em busca de autoafirmação, em manifestações do tipo “eu conheço o mundo todo”; “o meu carro é o melhor”; “eu tenho visão de empreendedor”; “eu sou mestre; doutor…”, “eu tenho amigos muito
influentes”; “eu estou sempre nas colunas sociais”; “minha presença é indispensável”; “eu faço barulho”; “eu arrisco a minha vida”…

São tantos “eu isso” e “eu aquilo”, que a condução de suas vidas nada mais significa do que pura enganação aos seus próprios “eus”, reveladora de vazios existenciais, haja vista que a necessidade de autoafirmação, como já
ressaltado, é satisfeita egoisticamente com a atenção roubada dos outros.

Segundo Oscar Wilde, o “egoísmo não é viver à nossa maneira, mas desejar que os outros vivam como nós queremos.” E esses “outros”, que nos desrespeitam repetidamente, segundo Allan Caetano Zanetti, nada mais são do
que “um monte de gente querendo aparecer, mas sem ter algo interessante para mostrar… que pena!”.

Desculpam-se, os barulhentos sobre duas rodas, afirmando que toda a “zueira” que provocam tem o objetivo de chamar a atenção alheia, não como forma de preencher um vazio interior, mas, sim, como meio preventivo para serem vistos no trânsito, o que evitaria acidentes. Acredite, se quiser!

Não é plausível acreditar que para evitar acidentes de trânsito motoqueiros atentem contra o meio ambiente e pratiquem um crime (perturbação do sossego alheio) e três infrações de trânsito (alterar as características da
motocicleta; circular com veículo com descarga livre; e produzir ruídos superiores a 60 decibéis). Sem contar que o roubo à nossa paz e o atentado ao meio ambiente são imperdoáveis!

Se possível nos fosse falar com eles sobre os nossos sentimentos, de duas, uma situação ocorreria: ou nós aplicaríamos dicas de Rui Barbosa ou alerta de Carlos Drummond de Andrade.

Com raiva, repetiríamos Rui Barbosa, dizendo-lhes que, quanto aos seus mal-feitos, “se foram por mera ignorância, perdoamos-te. Mas, se foram para abusar da nossa alma prosopopeia, juramos pelos tacões metabólicos dos nossos
calçados que dar-te-emos tamanha bordoada no alto das tuas sinagogas que transformaremos sua massa encefálica em cinzas cadavéricas”. Pautados pela moderação, os alertaríamos segundo Drummond: “Cuidado por onde andas, que é sobre os meus sonhos que caminhas”.

Enfim, a sociopatia pode ser tratada por profissionais da psicologia. Já a falta de educação é como a ponta do iceberg, como muito apropriadamente nos ensina Victor Hugo, ao dizer que “se você quer civilizar um homem, comece pela avó dele”.

Parece que estamos sem saída…

 

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